“A peça, se é sobre alguma coisa, é sobre troca. Troca de coisas”, disse a autora do texto, Luísa Costa Gomes, em entrevista à agência Lusa, observando ter sido sempre “muito sensível à conversa e ao diálogo como uma forma de troca”.
“Uma forma de troca de frases; de coisas que se vão dizendo e suscitam outras coisas”, indicou a autora, para quem “essa dança do diálogo, essa coreografia que é uma cena de uma peça de teatro” é “uma das coisas que mais” lhe interessam trabalhar.
O “sentido do diálogo é esse também, é aceitar a singularidade do outro”, frisou.
A história da peça centra-se em Roberto, um jovem “no esplendor dos seus 20 anos”, que tira um ano para ver o mundo numa espécie de “viagem iniciática”, segundo a sinopse da autora. Sem rumo e de mochila às costas, Roberto vai de bicicleta “numa concessão à modernidade”.
No fim de uma tarde de verão, Roberto chega ao cume de uma montanha e depara-se com uma casa de madeira isolada no meio de um bosque, para onde António, “no dealbar da velhice”, se retirou, em conflito com a natureza que o rodeia.
Ao cair da noite, Roberto apercebe-se que lhe roubaram a mochila com todos os pertences.
Doente e incapaz de pôr fim à vida, António convida Roberto a pernoitar em sua casa. Roberto aceita, acabando António por se servir dele “como arma involuntária para se suicidar”.
Nas mesmas montanhas, vagueiam a pé Domingos e Augusto, “dois cavalheiros cuja generosidade raia os limites da loucura” e testemunhas “benévolas das consequências do ‘crime’ de Roberto”.
A peça “parece uma caixinha mágica”, sublinhou o encenador, António Pires, remetendo para “o sentido de humor e o sarcasmo maravilhosos” do texto e para a forma “absolutamente maravilhosa” como a autora escreve os diálogos.
Além disso, o texto tem muito a ver com os dias de hoje: “Mesmo esta coisa da troca, da forma como vemos a troca” e que no texto é “desconstruída de uma maneira tão particular e em personagens que, muitas vezes, reconhecemos”.
Um texto que António Pires considera “muito, muito engraçado” sobre “uma coisa que não é evidente” nem sobre a qual possa mencionar temas concretos.
Uma “comédia de ‘nonsense’, mas bastante realista”, argumentou.
“Uma obra muito, muito grande”, observou, acrescentando tratar-se de uma peça que remete para outras obras da autora, mas também para dramaturgos como Kleist ou Beckett, “ainda que nada tenha a ver com o universo beckettiano”.
‘De passagem’ começou por ser uma opereta em cinco atos, com canções. Escrita em 1985, em inglês, numa altura em que a autora estava a “começar a escrever e a experimentar coisas”, chamava-se “Just passing through”, disse Luísa Costa Gomes.
Trata-se de uma das três peças que escreveu em inglês, das quais uma permanece inédita, revelou.
A autora pegou depois na versão original, que era muito comprida, pois tinha vocação operática, traduziu-a, foi cortando e refazendo até chegar à versão que se estreia na quarta-feira, em Lisboa.
Em 2014, a peça foi feita pela primeira vez, pelo Ensemble, no Porto, num espetáculo ao ar livre, nos jardins da Cooperativa Árvore.
António Pires confessou que Luísa costa Gomes já lhe dera o texto para ler há muito. ‘Aí há três anos’ acabou por lê-lo e disse logo que tinha de o fazer.
Uma “coincidência extraordinária” que deixou Luísa Costa Gomes “muito contente” por “no meio das 3.000 coisas” que António Pires faz tenha encontrado “o tempo e a disponibilidade para ler o texto e para o perceber”.
“Porque o texto fala disso. Fala de dádiva, mas é preciso que o outro queira receber essa dádiva. É preciso que o outro esteja disponível para receber essa dádiva”, frisou a escritora.
A interpretar a peça estão Francisco Vistas (Roberto), João Barbosa (António), Marcello Urgeghe (Augusto), Ricardo Aibéo (Domingos) e Sandra Santos (Maria Rita).
A cenografia é de Alexandre Oliveira, os figurinos de Luísa Pacheco e os desenhos de luz e de som de Rui Seabra e Paulo Abelho, respetivamente.
No Teatro do Bairro, ‘De passagem’ está em cena até 4 de fevereiro, com sessões de quarta-feira a sexta, às 21h30, e, ao sábado e domingo, às 18 horas. Dia 27, há sessão com interpretação em Língua Gestual Portuguesa.
A peça será depois representada no Fórum Municipal de Alcochete (8 de fevereiro), no Theatro Circo, em Braga (15 e 16 de fevereiro), e nos Recreios da Amadora (25 de fevereiro).
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